Comecei a viver experiências libertadoras, que venho conquistando nesse caminho. Essa liberdade ajustou-me fisicamente às limitações: criei minhas regras, fazendo o que quero, do jeito que posso. Instalei-me na tranquilidade
Da última vez, varamos a noite discutindo a vida. Rita me perguntou: “Como é que você está vivendo com as limitações dos 82 anos? Mais quatro doenças crônicas e um câncer recente na língua?” Respondi prontamente: “Feliz, bem feliz!” Rita encarou-me com olhos arregalados de espanto e disse: “Você está mentindo.”
“Estou não. Sei que a sociedade ocidental tem sido cruel para com os velhos. Sofremos descasos como se fôssemos objetos maleáveis ao gosto dos mais jovens, instituições e família.
Simone de Beauvoir afirmou no seu livro ‘Velhice’: ‘Para nossa cultura, o velho é o outro,’ indefinível, distinto, portanto, um desconhecido nosso.”
O que fiz para encontrar felicidade nesse contexto opressor dos velhos foi percorrer a construção da minha identidade e da minha essência. Refleti sobre o ser em si e o ser para si sartriano. Aí palmilhei meu próprio ser até a existência real dos fatos que me formataram, quase sempre gostando, olhando e vendo o outro, e o aceitando. Aí já vislumbrei felicidade.
Da infância ao dia em que, como médica, parei de clinicar, graças aos pontos cruciais de minha corporeidade e existência octogenária que descortinaram minha finitude, quis conhecer mais.
Na infância, vivi a liberdade na casa da minha avó. Na adolescência, havia tensão e opressão. Era ignorante em: sexo, beleza do corpo, cheia de pensamentos vazios. Só obedecia a ordens. A sociedade me escravizou com questões para ter respostas ditadas por ela própria: “Vai ser o que na vida? Já tem namorado? Quando vai noivar? E se casar? Vai ter filhos?” Sucumbi a tudo, sem tempo para pensar. Vivi assim, a idade adulta e a primeira etapa da velhice, sabendo pouco o que eu era e o que queria da vida, muitas vezes sentindo-me bem infeliz.
Então escrutinei a minha vida. Descobri: fiz o que foi necessário ao bem comum: ao meu e ao do outro. Vi a finitude como um clarão brilhante que me fez reconhecer o eu em mim e para mim nesse fim. Ganhei a liberdade radical, desgarrei-me das algemas sociais.
Com essa ciência, comecei a viver experiências libertadoras, que venho conquistando nesse caminho. Essa liberdade ajustou-me fisicamente às limitações: criei minhas regras, fazendo o que quero, do jeito que posso. Instalei-me na tranquilidade, aposentei o futuro, vivo o momento.
Creio que não precisaria da pressão social, nem de nada para que cada um de nós tivéssemos octogenarice rica de paixões, amores mis à família e amigos e a si próprios. É para ser assim.
Rita me olhou, abraçou-me e disse: “Vamos caminhar!”
Publicado O povo 01:00 | jul. 7, 2024