Divertidamente velhas

Temos momentos simples que trazem alegria, perdas que entristecem, raiva que desonera a mente e nos faz agir, às vezes, com incongruência. As injustiças sociais que tornam os velhos invisíveis desolam, geram tédio e melancolia

Recentemente, minha amiga Rita e eu decidimos ver o filme “Inside Out 2” (Divertida Mente 2). No cinema contei que quando falei em casa que íamos assistir, veio uma celeuma: “Vocês vão ver filme de adolescente? Estão regredindo?” Respondi sem titubear: “Sim! Somos velhas, mas ainda temos vida e curiosidade para conhecer quais e como são as emoções dos adolescentes hoje.”

Foto: Arquivo Pessoal
Márcia Alcântara. Médica e escritora.

Rita perguntou: “Pra quê? Já passou!” Eu disse: “Sim, mas a resenha do filme trata de emoções da adolescente Riley vividamente. Vale a pena conhecer.” Ela disse: “Vai nos fazer refletir sobre nossas próprias emoções agora.” Concordei.

Foi 1h20min fixada à abordagem inteligente e perspicaz de emoções humanas, retratadas em formato eletrônico que ditavam a mente de Riley. Emoções, representadas de forma personificada como alegria, ansiedade, vergonha, tédio, tristeza, se manifestavam conforme Riley vivia. Mostrando como ela reagia a cada uma, em atitudes e ações.

Esse movimento nos abriu bem os olhos, apurou os ouvidos e gargalhamos das representações ora ingênuas, ora sarcásticas, mas sempre bem decodificadas. Vimos emoções esbarrando, desolando-se, descontrolando-se, crescendo e escondendo-se o quanto podiam. A ansiedade que agitava as cenas não venceu a alegria que driblava a força das crises ansiosas. Cada emoção surgia conforme Riley vivia.

Filme contagiante: Da alegria ao desgosto, uma emoção divertida. Reconhecemos através delas como influenciam nossas vidas, mesmo velhas. Temos momentos simples que trazem alegria, perdas que entristecem, raiva que desonera a mente e nos faz agir, às vezes, com incongruência. As injustiças sociais que tornam os velhos invisíveis desolam, geram tédio e, às vezes, melancolia.

Entusiasmadas com as cenas conectamo-as às nossas vidas. Rita disse: “É bom lembrarmos da célebre afirmação de Sartre em ‘A Idade da Razão’, de que a velhice é irrealizável porque as limitações corpóreas impostas pela idade podem nos impedir de alcançarmos uma síntese plena de nossa identidade e consciência.” Concordei: “Isso mesmo, mas não nos impede de ajustarmos nossas perspectivas viabilizadoras, como e quando quisermos e pudermos. Liberdade para isso, os velhos têm.”

Tomamos um café e nos abraçamos, marcando uma apresentação de jazz no CLUBE 5 e nos divertir, velhas assim.

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Fonte: https://mais.opovo.com.br/jornal/opiniao/2024/08/14/marcia-alcantara-divertidamente-velhas.html

Publicado no O Povo 01:15 | ago. 14, 2024

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Desvelando felicidade aos oitenta

Comecei a viver experiências libertadoras, que venho conquistando nesse caminho. Essa liberdade ajustou-me fisicamente às limitações: criei minhas regras, fazendo o que quero, do jeito que posso. Instalei-me na tranquilidade

Foto: Arquivo Pessoal
Márcia Alcântara. Médica e escritora.

Da última vez, varamos a noite discutindo a vida. Rita me perguntou: “Como é que você está vivendo com as limitações dos 82 anos? Mais quatro doenças crônicas e um câncer recente na língua?” Respondi prontamente: “Feliz, bem feliz!” Rita encarou-me com olhos arregalados de espanto e disse: “Você está mentindo.”

“Estou não. Sei que a sociedade ocidental tem sido cruel para com os velhos. Sofremos descasos como se fôssemos objetos maleáveis ao gosto dos mais jovens, instituições e família.

Simone de Beauvoir afirmou no seu livro ‘Velhice’: ‘Para nossa cultura, o velho é o outro,’ indefinível, distinto, portanto, um desconhecido nosso.”

O que fiz para encontrar felicidade nesse contexto opressor dos velhos foi percorrer a construção da minha identidade e da minha essência. Refleti sobre o ser em si e o ser para si sartriano. Aí palmilhei meu próprio ser até a existência real dos fatos que me formataram, quase sempre gostando, olhando e vendo o outro, e o aceitando. Aí já vislumbrei felicidade.

Da infância ao dia em que, como médica, parei de clinicar, graças aos pontos cruciais de minha corporeidade e existência octogenária que descortinaram minha finitude, quis conhecer mais.

Na infância, vivi a liberdade na casa da minha avó. Na adolescência, havia tensão e opressão. Era ignorante em: sexo, beleza do corpo, cheia de pensamentos vazios. Só obedecia a ordens. A sociedade me escravizou com questões para ter respostas ditadas por ela própria: “Vai ser o que na vida? Já tem namorado? Quando vai noivar? E se casar? Vai ter filhos?” Sucumbi a tudo, sem tempo para pensar. Vivi assim, a idade adulta e a primeira etapa da velhice, sabendo pouco o que eu era e o que queria da vida, muitas vezes sentindo-me bem infeliz.

Então escrutinei a minha vida. Descobri: fiz o que foi necessário ao bem comum: ao meu e ao do outro. Vi a finitude como um clarão brilhante que me fez reconhecer o eu em mim e para mim nesse fim. Ganhei a liberdade radical, desgarrei-me das algemas sociais.

Com essa ciência, comecei a viver experiências libertadoras, que venho conquistando nesse caminho. Essa liberdade ajustou-me fisicamente às limitações: criei minhas regras, fazendo o que quero, do jeito que posso. Instalei-me na tranquilidade, aposentei o futuro, vivo o momento.

Creio que não precisaria da pressão social, nem de nada para que cada um de nós tivéssemos octogenarice rica de paixões, amores mis à família e amigos e a si próprios. É para ser assim.

Rita me olhou, abraçou-me e disse: “Vamos caminhar!”

Fonte: https://mais.opovo.com.br/jornal/opiniao/2024/07/07/marcia-alcantara-holanda-desvelando-felicidade-aos-oitenta.html

Publicado O povo 01:00 | jul. 7, 2024

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